WANDERLEY NOVATO
Aspectos gerais do entendimento da natureza no pensamento ocidental
josé wanderley novato-silva
A obra de THOMAS (2010) traça o percurso da compreensão da natureza a partir da Inglaterra com método, rigor e muitos detalhes. Durante o caminho foram sendo acrescentadas outras contribuições que constituem o “molde europeu” de entendimento da natureza, pela maneira como tanto os homens cultos, as classes mais abastadas, governantes, religiosos e a população referiam-se e relacionavam-se com os animais, as plantas e as paisagens.
THOMAS (2010) inicia sua análise pela tese do “predomínio humano”, isto é, a visão tradicional de que o mundo foi criado para o bem do homem, devendo as outras espécies a ele se subordinar, que encontrava amparo direto na Bíblia. Essa visão, comum na Inglaterra nos anos 1500, remonta à filosofia grega, que também lhe serviu de justificativa. No plano divino ele inclusive menciona clérigos que afirmavam que após o Juízo Final o mundo seria aniquilado, uma vez que tinha sido feito apenas para acomodar a humanidade (p. 23). Assim, interpretações “perfeitamente razoáveis” da existência de outras espécies foram elaboradas: o boi e o cavalo, para labutar a nosso serviço; o cão, para demonstrar lealdade afetuosa; a galinha, para exibir satisfação em estado de parcial confinamento; o piolho era indispensável segundo o reverendo Kirby “porque fornecia poderoso incentivo aos hábitos de higiene” (apud Thomas, p. 25). Os vegetais e minerais também serviam ao mesmo propósito: a madeira, para fazer casas; os metais, para a glória e beleza da guerra, para que não ficassem “os homens pobres e nus espancando-se aos murros” (More, apud THOMAS, 2010, p. 25); ainda segundo More, as ervas daninhas foram criadas para exercitar o engenho humano, ao extirpá-las. Por isso é que os animais poderiam ser mortos segundo os interesses humanos: por carecerem de razão. THOMAS (2010) assinala que mesmo Hobbes, que excluía a autoridade das Escrituras sobre os domínios do homem e que zombou do “predomínio humano” ao afirmar que se o boi foi feito para o homem, então o homem foi feito para o leão, entendia que não poderia haver obrigações da humanidade para com os animais, porque “fazer pactos com as bestas é impossível” (apud Thomas, p. 27).
Esse tipo de afirmações conferia um cunho erudito às crenças populares, que iam na mesma direção. Somente a partir do século XVII as visões erudita e popular do mundo começaram a se separar. A introdução de uma terminologia latina passou a substituir na obra dos primeiros naturalistas as designações populares, as quais tinham aspectos pitorescos e ligados às histórias e aos sentimentos populares. Quando Lineu propôs sua nomenclatura, em 1737, estabeleceu regras rígidas, segundo as quais os nomes para o gênero e a espécie não poderiam ser baseados no cheiro, no gosto, no caráter moral, importância religiosa ou qualquer característica que pudesse ser entendida como subjetiva - o que foi lamentado por alguns, que acharam essa intervenção científica uma forma de criar uma linguagem incompreensível para o povo, mas também por poetas, que lamentaram a perda dos nomes evocativos, e do passado. (Thomas, p. 121/122).
O mesmo autor afirma que essa separação de saberes, embora tenha criado uma enorme quantidade de conhecimento sobre a natureza, despiu-a dos seus laços com os assuntos humanos, ao retirar os aspectos simbólicos da sua descrição, criando um “objeto externo” a ser estudado. “Uma das coisas mais belas no estudo das coisas selvagens é que estamos interessados nelas, enquanto elas não têm nenhum interesse em nós” (Turner apud THOMAS, 2010, p. 125).
Quanto às paisagens, entendidas como um ambiente geográfico que hospeda os relacionamentos entre várias espécies, Thomas faz alguns comentários. O primeiro diz respeito à voga do cultivo de árvores e do paisagismo, entre as classes abastadas do século XVIII, e à classificação dos animais entre selvagens, a serem amansados ou eliminados, domésticos, úteis para alguma tarefa, e de estimação, como objeto de afeto. No caso das árvores, o mesmo autor observa um caminho similar. A eliminação de florestas desde o mesolítico correspondeu ao progresso humano sobre a terra, acelerado pelo machado desenvolvido no neolítico. Na Inglaterra, por volta do ano 1000 provavelmente não mais que 20% da Inglaterra tinham cobertura florestal (THOMAS, 2010, p. 273). As paisagens florestais inglesas, a exemplo do que aconteceu em toda a Europa, foram exterminadas pelo machado. Para pastagens e cultivo, bem como para outras finalidades econômicas (extrativas para construção e combustível etc.) e terras comunais foram apropriadas, áreas reservadas à caça foram expropriadas. Embora a siderurgia também causasse intenso desmatamento, posteriormente gerou reflorestamento de árvores para corte com o fim de produzir carvão.
O mesmo autor observa que o processo de destruição das florestas foi visto por muitos como o apogeu da civilização sobre o espírito rústico, uma vez que as matas eram inadequadas para os homens no espírito capitalista. Nelas havia moradores – livres das convenções do Estado e da Igreja, eventualmente ladrões – e o processo civilizador encarregou-se então de eliminá-los. As matas eram mal vistas, portanto; THOMAS, (2010) menciona inúmeros trabalhos que atestam essa visão de incompatibilidade entre civilização e mata, e exemplifica com um ensaio de 1680 no qual Houghton escreveu que seria bom que “não houvesse nenhuma árvore num raio de 32 km de qualquer rio navegável” (apud Thomas, p. 279). Mesmo o declínio dos carvalhos na Inglaterra não devia “ser lamentado, pois se trata de uma prova segura do aprimoramento nacional” (apud Thomas, p. 279).
A mudança contemporânea – mais simpatia para com as árvores – foi progressiva, e até os sentimentos estéticos associados aos bosques desempenharam um papel nesse embate contra os imperativos econômicos. Posteriormente as árvores chegaram a ter um papel similar aos de animais de estimação, de inspiração religiosa e, assim como as florestas, assumiram um status romântico. Velhas árvores eram impedidas de serem cortadas porque seu corte não poderia ser feito “sem um sentimento de remorso”, “uma violação da natureza” (Marsden, apud THOMAS, 2010, p. 303).
Os primeiros alvores do que mais tarde seria um desenvolvimento do pensamento ecológico enquanto movimento intelectual (a “ecologia profunda”) e político (a “libertação dos animais”) encontra-se em ativistas que, desde a revolução francesa, procurou associar a crítica às guerras e à escravidão à crítica aos danos à natureza e maus tratos aos animais (THOMAS, 2010, p. 262/263). A jardinagem e o paisagismo também se cercavam desse espírito que combinava aspectos estéticos, em parte conformados pela arte (como a pintura) com outros que iam do conforto que proporcionavam esses ambientes ao misticismo ao qual eventualmente eram associados.
Outro aspecto associado à paisagem mencionado por THOMAS (2010) é a oposição entre campo e cidade que o capitalismo fez crescer e que o industrialismo fez explodir. Enquanto que no Renascimento o campo era rude e a cidade, civilizada, uma possível inversão dessas duas visões tornou-se foco de discussão. Mas a poluição sem controle dos primeiros momentos da Revolução Industrial exacerbou o que já tinha sido descrito como os odores fétidos de Londres desde o século XVI (p. 346); a superpopulação de Londres tornou o convívio social perigoso; havia mais doenças na cidade; o ruído tornou-se insuportável – e então os moradores do campo passaram a ser vistos como mais saudáveis e moralmente mais admiráveis (p. 349). As “casas de campo” oscilavam então entre um lugar de passeio, ou moradia definitiva para os mais abastados se esconderem dos problemas urbanos.
Um último aspecto a ser mencionado foi a crescente reação à expansão da agricultura e das atividades econômicas, visto que a utilidade sobrepunha-se a qualquer outro aspecto associado à terra – e o carvão só poderia então ser visto como um grande benefício; além disso a maximização do uso do solo para a agricultura impunha a adoção de padrões geométricos de cultivo, que eram também vistos como uma vitória sobre o mundo selvagem – e mais tarde, como um tédio repulsivo que impulsionou a busca do “mundo natural”. Essa nova sensibilidade que se opôs ao modo econômico de ver a natureza fez com que, em fins do século XVIII “o apreço pela natureza e particularmente pela natureza selvagem se convertera numa espécie de ato religioso: a natureza não era apenas bela; era moralmente benéfica” (THOMAS, 2010, p. 368).
Esse fenômeno de divinização da natureza, basicamente europeu, tinha entre seus “profetas”, além de Rousseau, Alexandre von Humboldt (Thomas, 2010, p. 369), e foi facilitado pelas tecnologias que, proporcionando maior acessibilidade, aproximaram a natureza – por exemplo, as montanhas – dos moradores das cidades. As facilidades das viagens turísticas fizeram com que “o apreço pelo cenário sublime aumentava na mesma proporção em que subia o número de estradas de pedágio” (Thomas, 2010, p. 369) e contrastava fortemente com um passado não remoto em que, na luta contra as espécies que atrapalhavam a agricultura, foram dizimados – havia profissionais especializados para isso em cada paróquia – milhares de toupeiras, texugos, porcos-espinhos, furões e muito mais milhares ainda de aves, que a tecnologia permitia já que fossem abatidos em pleno voo – embora o prazer, mais que a necessidade, tenha desempenhado um papel maior nessa matança (THOMAS, 2010, p. 388).
Durante o século XIX que o movimento conservacionista foi então crescendo; sua argumentação tornou-o, ao fim, capaz de em muitos casos justificar a conservação apelando para as funções que as espécies conservadas desempenhavam no controle de insetos e outras pragas, além do seu potencial de ajudar as atividades humanas. As aves marinhas, por exemplo, ganharam proteção legislativa no Império Britânico sob o argumento de que indicavam aos marinheiros a localização de cardumes de arenques (THOMAS, 2010, p. 394).