WANDERLEY NOVATO
Burocracia na Saúde: Max Weber vai ao SUS
No distante país do FimdoMundo a pandemia da COVID-19 tinha tomado uma proporção inimaginável. Mesmo tendo uma população pequena, o número de doentes era assustador, e as UTIs não dispunham de respiradores suficientes para os pacientes em estado grave. Os médicos tinham que tomar decisões difíceis para escolher quem seria o paciente que teria prioridade, e lidar com os protestos e a agonia dos familiares. A quase totalidade dos pacientes nessa situação era idosa.
O diretor do serviço de saúde do país, Dr. Racionaldo, tinha que fazer alguma coisa. Ele era conhecido por ser uma pessoa metódica e ponderada, que colocava a racionalidade acima das emoções e questões pessoais. Sua tese de doutorado tinha o seguinte título: “Burocracia hospitalar: quando as normas fazem a diferença”, em que defendia a aplicação dos princípios weberianos às rotinas dos serviços de saúde.
Ele convocou uma reunião com seus principais assessores – oito pessoas – e disse o que era esperado: “Temos que elaborar um protocolo que retire dos médicos esse fardo. Como Weber faria, normas impessoais terão o poder de decidir”. Os assessores então elaboraram um protocolo definindo os critérios para quem deveria ter o acesso em primeiro lugar, sempre que houvesse um problema desse tipo. Mas houve um problema: não havia consenso sobre o limite de idade a partir do qual alguém deveria perder totalmente a prioridade – 70 ou 80 anos. O argumento de uns era que quando houvesse algum caso em que o critério de idade seria o definidor, deveria sempre ser contemplada alguma pessoa que poderia viver mais – e definiam que quem tinha mais que 80 anos deveria sempre perder a prioridade. “Quem ainda não viveu tanto, merece mais algum tempo, até para consertar o mal que pudesse ter feito em vida”, era o argumento.
Outros diziam que isso era uma bobagem, e que deveria ser levado em conta nesses casos (quando critério de idade seria o definidor) sempre seria a obra da pessoa, e a capacidade que ela teria ainda de contribuir para a sociedade, apesar da idade. Essas pessoas diziam que ter 70 ou 80 anos não fazia diferença, e que, portanto, a partir dos 70 anos o critério deveria ser “o que a pessoa fez e pode fazer pela sociedade”. Isso colocaria uma avaliação algo subjetiva de “quem é que ainda pode contribuir”.
A questão era, então: quem tivesse mais de 80 anos deveria sempre perder a prioridade, ou, a partir dos 70, uma comissão de médicos em cada hospital deveria julgar “quem fez e pode fazer mais pela sociedade”.
O Dr. Racionaldo era da opinião de que o critério deveria ser objetivo, e por isso já tinha confessado com alguns amigos que “depois dos 80 anos uma pessoa tão doente deveria descansar. Com 70 anos a pessoa ainda tem alguma juventude. Muita gente ainda trabalha nessa idade”. Mas quando falava formalmente afirmava sempre que a decisão deveria ser do grupo, e não dele.
A discussão se arrastava e o Dr. Racionaldo disse então: “Não há consenso – vamos votar!” Todos concordaram, mas ninguém esperava que fosse haver um empate – e foi o que aconteceu. Uns propuseram um jogo de “cara ou coroa”, mas o Dr. Racionaldo foi enfático: “Isso não é uma questão de sorte, mas de racionalidade. Vamos fazer uma nova rodada de argumentos, e votar de novo” E o resultado será comunicado imediatamente. Um minuto após a nossa decisão todos os hospitais do país seguirão o nosso protocolo”.
Depois de meia hora de discussão, houve nova votação, mas permaneceu o empate. Então os assessores se reuniram e disseram ao diretor. “Não podemos perder mais tempo. O senhor é a maior autoridade em saúde no país, e ninguém duvida da sua imparcialidade. O senhor, portanto, deve ter o voto final de desempate, como acontece nos Conselhos de Administração de tantas organizações bem-sucedidas como o senhor mesmo citou em seu monumental trabalho de doutorado”.
Sem outra alternativa, e constrangido pela situação, ele aceitou – mas pediu alguns minutos para pensar. Sentou-se em sua sala, sozinho, quando recebeu um telefonema. Era sua filha, que vivia com a avó – a mãe do Dr. Racionaldo – a única pessoa no mundo que ele realmente amava, que tinha criado sozinha, quase na miséria, ele e seus quatro irmãos, todos médicos. A sua neta estava quase chorando, e disse: “Papai, vovó começou a passar mal de repente! Ela não está conseguindo respirar! Nós a levamos ao hospital às pressas, e foi feito um teste rápido – ela está com a COVID-19!”. Ela está na fila, esperando um respirador. Graças a Deus, ela tem mais de 80 anos, e os médicos disseram que estão priorizando as pessoas mais velhas. Há uma outra pessoa com 70 anos na fila também, e me disseram que é uma comunista, mãe de um sujeito que teve até participação na luta armada – essa gente que não acredita em Deus. Eu não quero mal a ninguém, mas ela não soube nem educar um filho! Que diferença de vovó, que criou sozinha cinco médicos como o senhor e seus irmãos! Ainda bem que a decisão é do hospital! Estou ligando só para avisar ao senhor que vovó ainda tem chances! Afinal, todos na família dela passaram dos 95 anos, não é? Graças a Deus!”
Ele desligou o telefone ainda em estado de choque, e lembrou-se de que, quando era jovem, tinha participado de vários movimentos contra a ditadura militar, e, ainda que não fosse a favor da luta armada, tinha admiração pelas pessoas que tinham lutado mais que ele. Mas não teve muito tempo para pensar no assunto: um dos assessores bateu na porta, e disse, sem abri-la: “Senhor, estamos aguardando a sua decisão. Afinal, a idade para perder a prioridade quando o fator definidor for a idade deve ser mais de 80 anos, ou mais de 70? Os hospitais estão cobrando essa decisão imediatamente”.
a) O Sr. Racionaldo deveria mudar de opinião, dizendo que pensou melhor, e que “com 80 anos a pessoa ainda pode viver muito” – certamente salvando a mãe, e provavelmente condenando a outra idosa à morte;
b) Ele deveria manter a sua opinião, baseada em seus critérios racionais; nesse caso, salvaria a mãe do militante comunista.
Defenda seu ponto de vista, fazendo uma escolha e justificando sua decisão.
Nos seus comentários você pode vislumbrar outra solução para a questão, dentro dos princípios da burocracia.
Vamos discutir a racionalidade, a adequação e eventuais problemas relacionados a essas escolhas.